Mini corações, grandes desenvolvimentos: organoides cardíacos e a revolução no estudo da saúde materno-fetal

A medicina regenerativa continua a expandir seus horizontes, proporcionando novas formas de entender e tratar doenças complexas. Uma dessas inovações envolve o uso de organoides cardíacos – estruturas tridimensionais que mimetizam a função do coração humano. Recentemente, pesquisadores têm explorado o potencial desses mini corações para estudar complicações associadas à gravidez e defeitos congênitos.

O coração é o primeiro órgão a funcionar completamente no embrião humano em desenvolvimento. Por esse motivo, ele é exposto por um longo período a substâncias com as quais a gestante pode entrar em contato, como medicamentos ou poluentes. Esta pode ser uma das principais razões pelas quais a doença cardíaca congênita é o tipo mais comum de defeito associado ao nascimento. Para se ter ideia, a estimativa é de que essas condições afetam 1 a cada 100 nascimentos em todo o mundo.

Assim, o entendimento preciso acerca de como acontece o desenvolvimento do coração humano é fundamental. Tradicionalmente, os cientistas têm usado modelos animais e culturas celulares bidimensionais, em monocamada, para esses estudos. No entanto, muitos desses modelos não conseguem capturar a complexidade do coração humano. E, devido a limitações éticas, o uso de embriões humanos para essas investigações é inviável.

Nesse contexto, os pesquisadores têm desenvolvido um modelo, composto por estruturas celulares 3D, bastante relevante: os organoides. Eles replicam aspectos significativos da estrutura e função de algum órgão específico do corpo humano, possuindo um imenso potencial para imitar aspectos chave da fisiologia e de muitas doenças em laboratório.

Os organoides cardíacos são derivados de células-tronco pluripotentes induzidas (iPSCs), as quais têm a capacidade de se diferenciar em diversos tipos celulares, incluindo os que compõem o coração, como cardiomiócitos e células marcapasso. Essas células se auto-organizam em estruturas tridimensionais em um processo altamente controlado, que pode ser ajustado para replicar diferentes estágios do desenvolvimento cardíaco fetal. Os pesquisadores utilizam uma combinação de fatores de crescimento e sinais químicos para guiar as células através das etapas de diferenciação. A monitorização contínua e a análise detalhada dessas estruturas permitem uma compreensão mais profunda das dinâmicas envolvidas no desenvolvimento cardíaco.

Ou seja, utilizando técnicas avançadas de engenharia tecidual, os cientistas conseguem criar estruturas que reproduzem a arquitetura e as funções básicas do coração. Esses organoides fornecem um modelo inovador para estudar o desenvolvimento cardíaco e as patologias associadas de uma maneira que não seria possível em modelos animais ou culturas celulares bidimensionais. Além disso, a eletrofisiologia e a bioenergética dessas estruturas são muito semelhantes aos corações embrionários humanos, diferentemente dos modelos animais.

Durante a gravidez, o coração do feto passa por um desenvolvimento rápido e complexo. Complicações nessa fase podem levar a defeitos congênitos ou problemas de saúde para a mãe e/ou para o bebê. O uso de organoides cardíacos permite aos pesquisadores estudar como diferentes fatores, como infecções, toxinas ambientais ou mutações genéticas, podem interferir nesse processo de desenvolvimento. Sabe-se, por exemplo, que diabetes, hipertensão e até mesmo depressão podem aumentar o risco de doenças cardíacas em recém-nascidos. 

Visando avaliar os efeitos do diabetes no desenvolvimento cardíaco fetal, um estudo de 2021 publicado na Nature Communications utilizou organoides cardíacos. Ao expor essas estruturas a condições diabéticas, os cientistas puderam monitorar as alterações no desenvolvimento e na função do tecido cardíaco, e observaram que as anomalias de desenvolvimento do coração relacionadas ao diabetes são provavelmente causadas por um desequilíbrio de ácidos graxos ômega-3, os blocos de construção das membranas celulares e moléculas sinalizadoras. 

Já outro estudo, realizado em 2023, e também publicado na revista Nature Communications, estudou o efeito da aplicação de ondansetron (Zofran), um medicamento comumente prescrito para prevenir náuseas e vômitos durante a gravidez, em organoides cardíacos. Esses organoides apresentaram desenvolvimento alterado das células ventriculares e função prejudicada, semelhante ao observado em recém-nascidos expostos ao ondansetron. Ou seja, essa metodologia pode ajudar a prever o efeito nocivo de diversos medicamentos durante a gravidez e, eventualmente, atualizar as suas diretrizes clínicas.

O mesmo grupo de cientistas que realizou os dois estudos acima pretendem também utilizar esses organoides cardíacos para estudar o efeito de antidepressivos sobre o desenvolvimento cardíaco, uma vez que o uso de antidepressivos durante a gravidez está associado a um aumento do risco de defeitos cardíacos ao nascimento. 

Os organoides cardíacos representam um avanço significativo no estudo das complicações associadas à gravidez e dos defeitos congênitos. Ao oferecer um modelo mais preciso e eticamente aceitável para a pesquisa, eles abrem caminho para novas descobertas e, eventualmente, para o desenvolvimento de intervenções terapêuticas mais eficazes. Por meio do uso de tecnologias como a engenharia de tecidos e a biologia de células-tronco, a ciência está cada vez mais próxima de desvendar os mistérios do desenvolvimento cardíaco e de encontrar soluções inovadoras para problemas que afetam milhões de vidas.

Referências:

Artigo comentando sobre os estudos citados: Engineering mini human hearts to study pregnancy complications and birth defects 

Artigo sobre o efeito de condições diabéticas sobre o desenvolvimento de organoides cardíacos: Self-assembling human heart organoids for the modeling of cardiac development and congenital heart disease | Nature Communications 

Artigo sobre o efeito da exposição dos organoides cardíacos ao ondansetron (Zofran): A patterned human primitive heart organoid model generated by pluripotent stem cell self-organization | Nature Communications 

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