Entrevista com Dra. Karla Menezes

Dra. Karla Menezes é graduada em Enfermagem e Ciências Biológicas pela Universidade Federal de Uberlândia, mestre e doutora em Biologia Celular pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Participou da equipe coordenadora do estudo clínico multicêntrico randomizado de terapia celular em cardiopatias – infarto agudo do miocárdio, foi supervisora de pesquisa clínica do Laboratório Excellion e foi professora da Faculdade de Medicina de Petrópolis, trabalhando como coordenadora de pesquisa clínica em medicina regenerativa. Possui uma empresa de consultoria científica chamada CELLREPAIR. 

1) Dra. Karla, dada a sua vasta experiência em pesquisa clínica e terapia celular, poderia compartilhar conosco alguns dos avanços mais emocionantes que testemunhou ao longo de sua carreira na aplicação de células-tronco e terapia celular em diferentes áreas da medicina regenerativa?

Depois de muito observar as células progenitoras mesenquimais no microscópio, eu tive a oportunidade de ver pela primeira vez, o impacto dessas células na vida de um paciente. Em 2013, realizamos um transplante alogênico de células progenitoras mesenquimais, de tecido adiposo, em uma criança portadora de epidermólise bolhosa distrófica recessiva (EBDR), uma doença genética, letal, provocada pela ausência de colágeno 7, que se caracteriza principalmente por extensas lesões na pele e em mucosas. O procedimento foi realizado no hospital pró-cardíaco, através da terapia de compaixão, regulamento que possibilita o uso clínico de novas abordagens terapêuticas para doenças graves (também conhecido como uso compassivo). O transplante alogênico de células progenitoras mesenquimais já havia sido realizado em outros pacientes com EBDR no Chile, com resultados que demonstravam segurança e eficácia do procedimento. Eu fiquei muito impressionada primeiro pelo estado clínico do paciente, com apenas 4 anos de idade, e que apresentava inúmeras lesões cutâneas, no abdômen, tórax e membros inferiores. Mas, o que me surpreendeu foi a velocidade da melhora clínica, observada já nos primeiros dias. Duas semanas após o transplante celular foi possível observar a redução da área de lesão em praticamente todas as feridas. A melhora clínica foi observada no primeiro mês, porém a partir desse período não houve mais benefícios. As células transplantadas não conseguem sobreviver por um longo período no organismo, por isso a melhora clínica foi limitada. Mesmo assim, a família do paciente relatou que ele nunca havia realizado um tratamento tão eficaz na cicatrização das feridas. A terapia celular traz um fio de esperança para pacientes que lutam contra doenças tão avassaladoras, e que aguardam ansiosos pela cura, ou pelo menos, por um alívio para tanta dor. 

Mas, o que me surpreendeu foi a velocidade da melhora clínica, observada já nos primeiros dias.

2) Você participou de um estudo clínico multicêntrico randomizado de terapia celular em cardiopatias. Poderia nos falar sobre os resultados ou descobertas significativas deste estudo e como ele pode impactar o tratamento de pacientes com infarto agudo do miocárdio?

O estudo clínico multicêntrico para pacientes com infarto agudo do miocárdio foi um grande desafio para a equipe coordenadora. O projeto clínico era ambicioso, mas na prática, houve muita dificuldade em administrar o grande número de pacientes incluídos, e sobretudo, coordenar diferentes equipes médicas espalhadas em todo o país. Monitorar a distância todos os procedimentos envolvidos, as visitas de seguimento de 12 meses de cada pacientes, e até mesmo garantir a qualidade do preparo das células injetadas foram os pontos mais difíceis para a equipe coordenadora do estudo clínico. Além disso, os critérios clínicos utilizados para avaliar os pacientes nem sempre eram capazes de mensurar os benefícios trazidos pela injeção de células progenitoras mesenquimais. Foi observado um pequeno aumento da fração de ejeção, porém com evidências de melhoras significativas na qualidade de vida. Um fato importante que observamos, é que ao entrevistar os primeiros pacientes com insuficiência cardíaca, tratados com transplante celular há mais de 5 anos, os pacientes relatavam uma melhora tardia, com aumento progressivo na capacidade de executar atividades de autocuidado e prática de exercícios, por exemplo. Estes relatos nos indicam que o transplante celular pode ter um efeito prolongado, e alguns benefícios só poderiam ser observados em um maior período de tempo. Outro fato importante a ser relatado é que houve um paciente com insuficiência cardíaca congestiva grave, que recebeu transplante autólogo de células mononucleares da medula óssea, mas que foi a óbito 11 meses depois. Esse paciente não havia apresentado melhora significativa da fração de ejeção cardíaca após o transplante celular. Porém, durante a análise histopatológica do seu coração, foi observado uma maior vascularização na região do miocárdio que recebeu o transplante celular. Além disso, havia um maior número de cardiomiócitos no local onde as células haviam sido implantadas, em relação a região não tratada. Esse caso clínico demonstrou que nem sempre é possível mensurar benefícios que ocorreram a nível celular e tecidual. Os métodos de avaliação clínica podem não detectar a regeneração tecidual promovida pelas células progenitoras mesenquimais. 

3) Sua experiência abrange áreas diversas, desde ortopedia até dermatologia. Poderia compartilhar um exemplo de aplicação de terapia celular em uma dessas áreas que tenha sido particularmente promissora ou inovadora?

Na época em que trabalhei na Excellion participei do desenvolvimento de diversos projetos de pesquisa clínica em ortopedia, e em paralelo, houve a construção de um hospital (Hospitalys) que iria construir uma área laboratorial dentro do centro cirúrgico para manipulação mínima de produtos de terapia celular. A área limpa teria um fluxo laminar e equipamentos, como centrífuga, para preparar plasma rico em plaquetas no momento do implante celular. Além disso, sistemas de preparo de células humanas em sistemas fechados poderiam ocorrer no mesmo ato médico, dentro do centro cirúrgico. Era uma grande inovação médica, que iria trazer a medicina regenerativa para prática clínica, dentro de um contexto hospitalar, com uma infraestrutura nunca existente no país. Além disso, em dermatologia, a Excellion manipulava fibroblastos autólogos para regeneração de pele, um produto de terapia celular que já havia sido aprovado pelo FDA. Essa proposta terapêutica, é de longe, a melhor alternativa de tratamento para rejuvenescimento facial, pois introduz na pele a principal célula que produz colágeno e elastina, entre outras proteínas da matriz extracelular. Porém, após a venda da Amil houve descontinuidade do hospital e encerramento das atividades da Excellion.

Por último, participei de um estudo pioneiro no mundo em odontologia, realizado pela UNIFASE, que demonstrou que condrócitos isolados de septo nasal podem promover melhora clínica de pacientes com osteoartrose da articulação temporomandibular e reabsorção condilar associados a deformidade dentofacial. Esse estudo clínico, fase I/II, incluiu 10 pacientes, que foram acompanhados durante 12 meses. O transplante celular promoveu estabilização articular, e possibilitou a regeneração de lesões ósseas articulares. 

Dra. Karla Menezes e equipe
4) Como profissional de pesquisa clínica e consultora científica, quais são os principais desafios que você vê no desenvolvimento e implementação de terapias celulares em medicina regenerativa? 

Existem muitos desafios, porque estamos trabalhando na fronteira do conhecimento. Fazer uma ponte entre médicos e cientistas é o primeiro deles, lembrando que o objetivo deve ser sempre atender as necessidades do paciente. A dor do ser humano deve guiar a ciência, na minha concepção. Levar o conhecimento da pesquisa básica até as lacunas que existem na medicina tradicional. Qualificar equipe e criar uma cultura de pesquisa dentro de ambientes hospitalares. Descentralizar o processamento de células progenitoras mesenquimais, porém garantindo a qualidade da produção, porque a tecnologia precisa se espalhar por todo o país, para alcançar o maior número de pacientes. Os laboratórios devem ser incorporados nos hospitais para o preparo de produtos de terapia celular avançada, como ocorreu com transplante de medula óssea. Do ponto de vista técnico, padronizar o preparo das células progenitoras mesenquimais, e expandir para produção em larga escala, de produtos alogênicos. O futuro é ter disponível nas emergências hospitalares, células progenitoras mesenquimais congeladas, que possam ser preparadas rapidamente para atender doenças agudas, como infarto agudo do miocárdio, acidente vascular encefálico e lesão raquimedular, por exemplo. A longo prazo, é preciso definir doses adequadas para cada doença, melhor via de administração e segurança em realizar injeções repetidas para tratamento de doenças crônicas inflamatórias. A sofisticação tecnológica deve envolver a combinação de células com biomateriais, modificação genética das células mesenquimais para expressar fatores de interesse ou entrega de fármaco nos locais de lesão. São muitos desafios, mas a boa notícia é que existem avanços já alcançados. A legislação destinada à medicina regenerativa no Brasil, que inexistia há pouco tempo atrás, hoje é bem estruturada pelas RDC n. 505 e 508 de Maio de 2021. Além disso, o Brasil foi pioneiro em diversos estudos clínicos em medicina regenerativa, e tem cientistas qualificados para conduzir esse processo. A exemplo disso, temos por aqui o professor Radovan Borojevic, um pesquisador com impacto científico no mundo com pesquisas com células progenitoras mesenquimais.

O futuro é ter disponível nas emergências hospitalares, células progenitoras mesenquimais congeladas, que possam ser preparadas rapidamente para atender doenças agudas, como infarto agudo do miocárdio, acidente vascular encefálico e lesão raquimedular, por exemplo.

5) Durante sua pesquisa e carreira, você se concentrou em estudar os efeitos da terapia celular, incluindo células-tronco mesenquimais, em modelos experimentais de lesão medular. Poderia compartilhar algumas das descobertas mais notáveis que surgiram desses estudos e como isso pode impactar o tratamento de lesões medulares no futuro?

Os estudos pré-clínicos em modelos experimentais de lesão medular demonstraram que o transplante de células progenitoras mesenquimais promovem a regeneração do tecido nervoso. Nós comparamos duas fontes de células progenitoras mesenquimais: medula óssea e tecido adiposo e houve maior recuperação neurológica motora naqueles animais tratados com células derivadas de tecido adiposo. As células implantadas são capazes de migrar rapidamente para o local da lesão, e podem sobreviver até 4 semanas. Embora as células injetadas fossem humanas, não houve sinais de rejeição. Ao contrário, notou-se uma redução do número de células inflamatórias (macrófagos e microgliais) no parênquima nervoso. As células implantadas não só modularam as células do sistema imunológico do animal, mas também orquestraram a formação de novos vasos sanguíneos, através da secreção de inúmeros fatores pró-angiogênicos (como FGF, PDFG, entre outros). A terapia celular também promoveu a redução da área de lesão nos animais tratados. Destaca-se, sobretudo, a capacidade das células progenitoras mesenquimais em promover a regeneração dos tratos neuronais. Foi possível visualizar fibras axonais serotoninérgicas atravessando a área de lesão, e alcançando a região caudal da lesão. Além disso, as células implantadas secretaram uma proteína da matriz extracelular que é muito importante para a condução do crescimento axonal, chamada laminina. Por último, notamos que as células progenitoras mesenquimais atraem inúmeras células precursoras neurais, que podem participar diretamente da reconstrução do tecido nervoso. O conjunto dessas ações permitiu que os animais recuperassem a função motora após lesões moderadas e graves. Esses resultados observados nos animais demonstram o enorme potencial terapêutico das células progenitoras mesenquimais no tratamento de lesões agudas raquimedulares, e podem impactar a qualidade de vida dos pacientes que hoje não possuem nenhuma alternativa de tratamento considerado eficaz. 

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