Entrevista com Dr. Hamilton da Silva Junior

Dr. Hamilton da Silva Junior é Gestor Executivo de Inovação em Biotecnologia. Biólogo bacharel em Genética, formado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), possui Mestrado em Ciências Biológicas pelo Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho (UFRJ) e Doutorado em Ciências Morfológicas pelo Instituto de Ciências Biomédicas/UFRJ. Possui especialização em imunologia pelo Institut Pasteur de Paris, Pós-Doutorado em imunologia clínica pelo INCa-RJ e MBA em Gestão e Desenvolvimento Empresarial pela FACC-UFRJ. É especialista em Gestão de Negócios pela FIRJAN-IEL/RJ, especialista em Licenciamento Ambiental pelo SENAC-RJ, Gestão Ambiental pela Evolutis e Técnicas de Construção Civil pela Concretta. Possui experiência de mais de 15 anos em inovação em biotecnologia e, atualmente, é CSO da empresa Scirama – startup brasileira de Ciência Psicodélica.

1) Dr. Hamilton, sua trajetória acadêmica é impressionante, com destaque para sua formação em Genética e os diversos cursos de especialização, incluindo um pós-doutorado em imunologia clínica. Como essas diferentes áreas de conhecimento contribuíram para a sua abordagem inovadora na gestão de projetos em biotecnologia e terapia celular?

Minha motivação seminal na área biológica sempre foi entender a relação da genética com a morfologia. Sempre ficava intrigado com a proximidade da identidade genética entre as famílias e até reinos, mas com a variação fenotípica existente. O que hoje é tratado no campo denominado Evo-Devo.

Esta curiosidade me conduziu naturalmente para os sistemas. E o sistema que mais me fascinou foi o sistema imunológico. Ele é tão abrangente que explorar qualquer aspecto da sua função ou ação exige que o pesquisador transite em quase todos os outros sistemas. Então, sempre que somos forçados a ter um olhar macro sobre qualquer conjunto de sistemas acabamos enxergando muitas lacunas no conhecimento. Mas também enxergamos soluções redundantes, complementares ou alternativas. E isso resume bem o conceito de inovação.

A vivência em um ambiente cheio de necessidades aliada ao conhecimento de fenômenos existentes, que muitas vezes são correlacionados, nos leva ao evento criativo, a catarse. Dificilmente encontramos exemplos de ações inovadoras sem a experiência da necessidade somada ao conhecimento de fenômenos análogos.

Eu sempre recomendo o exercício nos ambientes que precisamos promover a inovação: “Pense em algo que você acha que não existe, mas deveria existir para facilitar ou melhorar algo!”….Invariavelmente, a pessoa desafiada vai tentar imaginar uma solução fora da sua área de vivência, do seu conhecimento, e vai encontrar numa busca simples que já existem diversas soluções para a necessidade que pensou.

Portanto, a multidisciplinaridade das minhas experiências profissionais sempre facilitou minhas necessidades de criação de soluções.

2) Como Gestor Executivo de Inovação em Biotecnologia, você tem experiência em projetos de transferência tecnológica. Poderia compartilhar conosco um exemplo significativo de como a inovação foi fundamental para o sucesso de um projeto específico em que esteve envolvido, destacando os desafios enfrentados e as soluções alcançadas?

Eu sempre estive envolvido com processos de pesquisa e desenvolvimento voltados para inovação. Ou seja, meus desafios sempre envolveram transportar o que funciona na bancada do laboratório para uma linha de serviço ou produção. O que significa partir de um ambiente regulatório mais complacente para um campo restrito, cheio de regras, sistematizações e parametrizações. Então, tudo é desafiador. Desde criar uma documentação funcional, que atenda ao arcabouço regulatório, mas sem onerar desnecessariamente o processo, até escalonar um processo para gerar os mesmos resultados com muito mais produto.

Por exemplo, na terapia celular a partir de biópsias autólogas para transplante. Para escalonar o processo tivemos que vivenciar o planejamento de custo/benefício. Expandir células em garrafas de cultura exigia muitas estufas, que são caras e consomem muitos recursos. Tivemos que desenvolver parcerias com fornecedores para criar recipientes para cultivo de células aderentes, como uma espuma de poliestireno dentro de bolsas de sangue, sob agitação leve, para podermos otimizar espaço, horas de trabalho e consumo de recursos. Assim podíamos atender maior número de clientes em paralelo, propiciando viabilidade econômica ao serviço.

A vivência em um ambiente cheio de necessidades aliada ao conhecimento de fenômenos existentes, que muitas vezes são correlacionados, nos leva ao evento criativo, a catarse.

3) Sua expertise abrange desde manipulação de células para transplante de medula óssea até engenharia genética. Como você vê o papel das terapias celulares, especialmente aquelas envolvendo células-tronco, no futuro da medicina e quais são os desafios mais urgentes que a comunidade científica enfrenta nesse campo?

Desde a década de 90 a comunidade científica vislumbra as terapias celulares como uma alternativa viável para diversos tratamentos. O desenvolvimento e a geração de conhecimento na biotecnologia nos revelaram diferentes desafios tecnológicos e regulatórios.

No âmbito regulatório, o Brasil, na virada do milênio, estava na vanguarda tecnológica das terapias celulares e gênicas. Diversos centros especializados nasciam e cresciam até que a insegurança regulatória nos levou a uma insegurança jurídica que freou o desenvolvimento nesta área, extinguiu as iniciativas privadas no setor que se resumiram a bancos de células e tecidos. Somente em 2018 o arcabouço regulatório ressuscitou a possibilidade da retomada das terapias celulares no país. Infelizmente, enfrentamos uma pandemia em seguida, o que forçou a mudança de foco do setor.

Sobre a tecnologia, o mundo científico encontrou soluções e desafios translacionais. O transplante de células em suspensão resolveu, e resolve, muitas manifestações patológicas. Os avanços mais animadores são com o sistema CRISPR que resolvem significativamente tumores que eram inalcançáveis até então. Já o transplante de estruturas tridimensionais resolve necessidades de preenchimento, mas ainda precisamos muito resolver problemas funcionais, mecânicos e de produção. Por exemplo, como a bioimpressão vai se posicionar nesse cenário?

Portanto, ainda existem muitos desafios que a biotecnologia precisa enfrentar. É preciso uma integração mais participativa entre os setores técnicos e regulatórios, como: ANVISA, Conselho Federal de Medicina (CFM), sociedades médicas, Instituições de Ciência e Tecnologia (ICTs), Ministério da Saúde. Essa integração pode mitigar as mudanças bruscas no ambiente regulatório, para estimular os investimentos no setor, e orientar o desenvolvimento para objetivos consensuais, para que as tecnologias atendam às exigências de todos os responsáveis e cheguem aos pacientes.

4) Além de sua atuação em biotecnologia, você possui especializações em licenciamento ambiental e construções sustentáveis. Como essas competências se entrelaçam em sua abordagem de projetos biotecnológicos e qual é a importância de considerar a sustentabilidade nesse contexto?

A transposição e o escalonamento da biotecnologia acontecem em um ambiente extremamente regulamentado. Qualquer processo biotecnológico exige muitos recursos, de todas as naturezas (humanos, estruturais, materiais, tecnológicos e, consequentemente, financeiros). Como o objetivo é sempre transplantar, isso significa trabalhar em assepsia, no conceito de salas limpas, certificações, ou seja, muitos investimentos, treinamentos, horas de trabalho. O consumo desses recursos gera consequências tão grandes quanto. Muitas embalagens, lixo biológico, tudo exige tratamento especial que no final só podem ser descartados por incineração ou estocagem de quarentena. Além disso, a biotecnologia evolui sem parar. Soluções inovadoras aparecem, regulamentações são atualizadas, e mais do que isso, até o layout de um laboratório exige mudanças. Lidar com isso tudo me forçou a resgatar da minha formação acadêmica a atuação no setor ambiental. E naturalmente me levou a conhecer e trabalhar com métodos construtivos mais modernos, mais plásticos e flexíveis.

A sustentabilidade no processo de inovação acaba sendo muito mais do que ideológico. Essa gestão contínua de mudanças beneficia-se significativamente da prática de planejamentos sustentáveis. Alivia o impacto dos investimentos e no final contribui para a relação de custo/benefício dos processos, o que ajuda na viabilidade econômica, melhora preços, reforça a competitividade.

5) Com seu conhecimento em formulações farmacêuticas com rota biotecnológica e registro de medicamentos, poderia compartilhar insights sobre a evolução recente no desenvolvimento de medicamentos biotecnológicos? Além disso, como você enxerga o papel desses medicamentos no avanço da medicina personalizada?

A farmacologia foi construída com base em alvos específicos através de vias pleiotrópicas. A biotecnologia busca incansavelmente soluções que afetem menos o todo e mais o alvo. Mas, as interações biológicas, bioquímicas, biofísicas, possuem compatibilidades e redundâncias que virtualmente nos impedem pensar que um dia será possível atingir um alvo com efeito colateral nulo. Surge então a estratégia dos biomateriais. Com uma composição elaborada é possível mitigar os efeitos colaterais, seja através de um depósito ou bombeamento para liberação controlada dos fármacos, ou pelo endereçamento utilizando biomarcadores característicos para uma ação local.

Entretanto, evoluir em formulações, farmacotécnica, exige muito desenvolvimento fora do efeito farmacológico alvo. Desenvolver um medicamento novo traz atenção para a segurança biológica não só dos fármacos, mas também dos novos materiais, dos metabólitos, das interações químicas, das vias de excreção, das reações adversas. Não à toa temos o dito popular: “A diferença entre o remédio e o veneno é a dose!”. 

Hoje as ciências médicas avançam em várias direções em paralelo. CRISPR e os moduladores glicêmicos (semaglutida, tirzepatide etc) são os melhores exemplos dessa evolução. Temos a inteligência artificial, os equipamentos, os novos biomateriais, novas moléculas e a combinação desses elementos. E ainda, nas iniciativas que participo continuamos encontrando um oceano azul de moléculas desconhecidas na biodiversidade.

Portanto, no meu ponto de vista, olhando para o horizonte, vejo um campo aberto para muitas soluções possíveis. A história nos mostra que o futuro não converge para uma abordagem. Seguiremos com uma organização matricial de opções terapêuticas baseadas em biotecnologia.

A sustentabilidade no processo de inovação acaba sendo muito mais do que ideológico. Essa gestão contínua de mudanças beneficia-se significativamente da prática de planejamentos sustentáveis.

6) Sua experiência abrange garantia e controle de qualidade farmacêuticos. Considerando a natureza delicada e inovadora dos projetos em que esteve envolvido, como você aborda os desafios específicos relacionados ao controle de qualidade de produtos biotecnológicos e terapias celulares? Quais estratégias e metodologias têm sido mais eficazes para garantir a excelência nesse aspecto, considerando a complexidade intrínseca desses produtos?

O principal desafio é a resistência dos profissionais da biotecnologia à necessidade de uma sistematização dos processos e produtos. Há uma barreira invisível, difícil de transpor, ancorada nos vícios laborais que rotulam os sistemas vivos como variáveis o suficiente para não serem certificáveis, padronizáveis. Esta cultura está mudando conforme os empregos e oportunidades no mercado se multiplicam. A vivência em ambientes estritamente regulamentados facilita o diálogo entre o desenvolvimento e a sistematização dos processos.

O princípio de um processo de qualidade é que a equipe da qualidade não pode ser a mesma da produção/desenvolvimento. Este tipo de organização distancia os profissionais, acrescenta um desafio extra à gestão de gente, mas ao mesmo tempo mostra que é possível estabelecer parâmetros técnicos que asseguram a estabilidade dos processos e produtos. Hoje é possível usar empresas mundiais, que comercializam produtos biológicos certificados, como inspiração e modelo para o desenvolvimento e estabelecimento da parametrização necessária para assegurar a estabilidade de resultados em qualquer processo biotecnológico.

De fato, trabalhar com processos e produtos biotecnológicos exige mais recursos do que a maioria dos setores, e aí é que entra uma boa gestão. É preciso um esforço adicional para manter um sistema de qualidade funcional num processo biotecnológico.

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