Entrevista com Dr. Vitor Neves

Dr. Vitor Neves é especialista em Periodontia, com mestrado e doutorado em Odontologia Translacional e Regenerativa pelo King’s College London. Ele é qualificado no Brasil e no Reino Unido, e tem mais de uma década de experiência em ambientes clínicos e de pesquisa. Recentemente foi contratado como Professor Associado na Universidade de Sheffield (Reino Unido) – local em que realiza sua pesquisa focada em células-tronco, envelhecimento e biologia molecular e atua como diretor da pós-graduação de Periodontia. É também dentista especialista em Periodontia no Charles Clifford Dental Hospital, onde trata casos complexos periodontais. Em seu doutorado, sob supervisão do Professor Paul Sharpe, desenvolveu uma técnica de autocura dentária baseada na modulação genética e na ativação de células-tronco, que lhe rendeu diversos prêmios nacionais e internacionais. Após seu doutorado, ganhou um concurso nacional do National Institute for Health and Care Research (NIHR) para se qualificar como especialista em Periodontia no Guy’s and St Thomas’ NHS Foundation Trust – local em que desenvolveu pesquisas periodontais com foco no envelhecimento e no metabolismo da glicose. Com esse tema de pesquisa, ganhou o Sir Wilfred Fish Research Prize – prêmio de maior prestígio da Sociedade Britânica de Periodontia. Atualmente, Dr. Vitor está construindo seu laboratório em Sheffield e está aberto a receber alunos do Brasil, bem como a realizar colaborações com pesquisadores brasileiros. 

1) Você realizou a co-criação de uma técnica de autocura da dentina baseada na modulação genética e ativação de células-tronco na polpa dentária. Poderia explicar em detalhes o funcionamento dessa técnica e seu potencial para revolucionar o tratamento de lesões dentais profundas? Como essa tecnologia se compara a procedimentos convencionais?

Durante minha pesquisa, eu consegui fazer com que a dentina do dente se autorreparasse. Este estudo foi feito em camundongos. A nossa técnica teve como base a indução de células-tronco na polpa dental com uma substância que bloqueia a GSK-3, uma kinase importante para a cascata de ativação gênica Wnt. Neste estudo, fizemos com que as células-tronco da polpa dental fossem super ativadas com essa substância, para que conseguissem realizar um reparo maior da polpa dental do que o reparo realizado por materiais que são usados no dia-a-dia da prática clínica, como por exemplo o hidróxido de cálcio para capeamento pulpar.

O diferencial dessa pesquisa é que, em nosso modelo, a dentina é secretada pelas células odontoblásticas novas, provenientes da ativação das células-tronco da polpa, sendo que elas crescem na área danificada, fazendo com que essa área seja completamente preenchida por dentina. Assim, é formada uma camada de dentina mais robusta e sem resquícios de materiais sintéticos. Desta forma, esta técnica baseada no estímulo biológico de células-tronco faz com que os dentes consigam se reparar com maior fidelidade à biologia de desenvolvimento dental.

Essa tecnologia abre portas para que possamos fazer com que cavidades que tenham a polpa dental exposta sejam reparadas mais facilmente, preservando a vida útil do dente e fazendo com que as pessoas mantenham os dentes saudáveis por mais tempo, sem necessidade de fazer um canal (procedimento que remove a vitalidade do dente para eliminar a dor).

Agora, precisamos de muito mais pesquisas para poder continuar desenvolvendo esse modelo de reparo. O desafio maior é fazer com que a dentina cresça de maneira vertical, ou seja, na direção do esmalte, e também fazer com que este modelo de reparo tenha sucesso em humanos, porque até agora toda a pesquisa foi feita em camundongos.  Portanto, ainda há um caminho considerável a ser percorrido até que consigamos fazer a translação desse modelo, que foi testado em animais, para seres humanos, de maneira que a população global possa se beneficiar.

Dr. Vitor ministrando palestra sobre sua pesquisa

2) Sua abordagem inovadora na utilização da metformina para o manejo da doença periodontal representa uma mudança significativa nos métodos tradicionais. Pode compartilhar conosco os resultados mais impressionantes que observou até agora na aplicação desse medicamento e como ele pode transformar o tratamento da periodontite?

Este estudo inovador explora o potencial do uso da Metformina, um medicamento associado principalmente ao controle do metabolismo da glicose, como uma nova abordagem para o manejo da doença periodontal (DP) e suas implicações sistêmicas. Apesar dos avanços contínuos no tratamento da DP, o foco tem sido em grande parte no controle microbiano. Ao reaproveitar a Metformina e examinar o seu impacto em animais e humanos não diabéticos, a nossa investigação revelou efeitos preventivos promissores na perda óssea periodontal relacionada com a iniciação da doença e na perda óssea que ocorre com a idade. Além dos seus efeitos locais, a Metformina influencia a composição bacteriana oral e fatores sistêmicos, como níveis de glicose no sangue e ganho de peso, o que se mostra promissor para a potencial prevenção de diabetes e obesidade. 

Fizemos também o primeiro ensaio clínico randomizado usando Metformina sistêmica como medicação para o tratamento da doença periodontal em humanos normoglicêmicos e não obesos. O ensaio piloto indicou a segurança e eficácia da Metformina sistêmica em pacientes não diabéticos, modulando a imunidade, o metabolismo e os marcadores pró e anti-inflamatórios dos tecidos periodontais durante a fase inicial da cicatrização. O estudo também descobriu que o tratamento sistêmico com Metformina modulou a inflamação sistêmica e o metabolismo da glicose, independentemente de qualquer dieta. A Metformina administrada como medicação para o tratamento periodontal estabilizou a glicemia de jejum e a Proteína C-Reativa, assim como também melhorou a sensibilidade à insulina. Juntos, estes são marcadores associados a uma melhor saúde metabólica, sugerindo um avanço potencial no manejo preventivo de doenças orais-sistêmicas e doenças crônicas relacionadas à idade.

A integração da prescrição sistêmica de Metformina para manejo e tratamento da DP ainda precisa de mais investigações para um reaproveitamento generalizado e concentrado. Inicialmente, a dose de prescrição de Metformina para o tratamento da DP precisa ser ajustada, uma vez que a dosagem prescrita de Metformina é atualmente baseada na estabilização do metabolismo sistêmico desregulado da glicose, e não na prevenção de múltiplas morbidades em pacientes normoglicêmicos. Além disso, no que diz respeito à duração da dosagem, o uso prolongado de Metformina é geralmente aceito e seguro quando usado para o controle de condições sistêmicas, mas a otimização da duração da prescrição ainda precisa ser verificada para que o tratamento possa impactar positivamente o desenvolvimento de doenças orais-sistêmicas e progressão. Dado que foram observados sinais de prevenção de multimorbidade ao usar Metformina para o tratamento da DP, os marcadores biológicos dessas condições, como níveis sistêmicos de glicose, níveis lipídicos e tendências inflamatórias em pacientes normoglicêmicos com DP, precisam ser mais investigados. Em conjunto, estes passos poderiam levar à integração da gestão da doença de DP com a Metformina como um meio de gerir morbidades relacionadas com a idade antes do seu desenvolvimento ao longo da vida, impactando a incidência global de fatores de risco associados à DP, tais como doenças cardiovasculares, obesidade, diabetes, e declínio cognitivo.

3) Você possui a aspiração de moldar o futuro da Odontologia por meio da biologia molecular, genética e epigenética. Como você visualiza essa transformação na prática clínica odontológica? Quais são os desafios e as oportunidades associadas a essa abordagem biologicamente centrada?

Com certeza esse é o meu maior objetivo de carreira e continuarei sempre trabalhando para que a nossa profissão mude com o tempo. E essa expressão “com o tempo” é a chave principal para conseguirmos atingir este objetivo, porque as coisas não vão mudar de um dia pro outro. Por exemplo, os procedimentos que fazemos com segurança hoje na clínica, são provenientes das ideias inovadoras do passado. Portanto, com o tempo, veremos a translação da tecnologia sendo desenvolvida agora para a aplicação clínica segura. 

O único jeito de tentarmos fazer com que a odontologia melhore e passe para uma nova fase biológica é evoluindo a pesquisa e cruzando as barreiras que imaginamos que existem na odontologia. Então a melhor maneira de fazer isso é pela investigação científica, aumentando o número de dentistas que têm interesse em fazer pesquisa e prover financiamento para as mesmas. 

Vale ressaltar que a pesquisa científica não possui somente o objetivo clínico, mas tem também o interesse de entender a biologia, a microbiologia, a física e a química do corpo. A junção de conhecimento de todas essas áreas básicas, quando aplicadas em um futuro, se transformarão em diferentes estratégias de materiais e tratamentos. 

Então para transformarmos o tratamento odontológico para uma linha mais biológica é necessário entender melhor como o corpo funciona a priori, desde o desenvolvimento ao reparo, assim conseguiremos “copiar” a biologia “e colar” um novo tratamento. 

A maior dificuldade de fazer esse futuro ocorrer mais rápido para nossos pacientes acontece porque o profissional da área oral tem que entender que há necessidade de estudar mais as ciências básicas do que nós estudamos na graduação e na pós-graduação clínica. Infelizmente porque a nossa profissão é uma profissão técnica, a gente perde a conexão com as ciências básicas rapidamente. Portanto, precisamos melhorar o incentivo para os profissionais orais em formação, tanto na graduação quanto na pós-graduação clínica, se interessem em explorar essa parte biológica.  

É muito comum colegas clínicos que estão estudando na graduação e pós-graduação perguntarem: “Qual a finalidade clínica disso hoje?”, pois eles querem investir seu tempo em pesquisas que eles possam usar em pacientes hoje. Eu gostaria de ver mais colegas clínicos e pesquisadores como eu fazendo e perseguindo a seguinte pergunta: “O que eu posso fazer hoje para melhorar a odontologia do futuro?”. A oportunidade mora no horizonte do abismo da falta de conhecimento. 

O único jeito de tentarmos fazer com que a odontologia melhore e passe para uma nova fase biológica é evoluindo a pesquisa e cruzando as barreiras que imaginamos que existem na odontologia. Então a melhor maneira de fazer isso é pela investigação científica, aumentando o número de dentistas que têm interesse em fazer pesquisa e prover financiamento para as mesmas. 

4) Como um apaixonado por compartilhar conhecimento e inspirar dentistas ao redor do mundo, quais iniciativas você considera cruciais para a disseminação das inovações em odontologia? Que papel as novas tecnologias de comunicação e educação podem desempenhar nesse processo?

Educação odontológica é essencial para formação dos nossos profissionais.  Desde os dentistas até os profissionais de apoio da odontologia, os protesistas, as enfermeiras, as higienistas, etc., todas as pessoas que trabalham ao redor da odontologia.

Novas tecnologias sempre vão surgir. Não é a primeira vez que isso acontece, e não vai ser a última. O problema é que geralmente, os locais de graduação/pós-graduação desses profissionais não conseguem manter o ritmo dessa evolução. O motivo principal acaba sendo que os locais de ensino precisam manter os profissionais hábeis em fazer os melhores procedimentos atuais possíveis para a população, e não o mais “high-tech”. Portanto, cabe aos profissionais habilitados nessa linha de frente da evolução fazer com que o entendimento e conhecimento sobre essas novas áreas seja expandido e explorado. 

Uma das maneiras que isso acontece atualmente é por meio da mídia social. Existem alguns profissionais que conversam sobre essa parte de novas tecnologias, mas, infelizmente, de uma maneira bem superficial, porque existem muitas vertentes para serem explicadas. Então às vezes não há como entender o espectro completo dos prós e contras de uma técnica, assim como explicar exatamente como as coisas funcionam. Pra você ter um entendimento adequado você tem que ler artigos e livros, o que acaba sendo também uma outra barreira pois grande parte da população brasileira não tem conhecimento da língua inglesa. Ainda, para se ter uma completa compreensão de um assunto é importante entender como avaliar criticamente as coisas porque nem tudo é “preto e branco”. Existem nuances na ciência, assim como previsões e inferências, as quais podem ser mal interpretadas e usadas.

Tirando essa parte, também há uma necessidade de cursos de continuação de educação sobre biologia, química, e física aplicados à odontologia, fora do contexto de curso de pós-graduação, para que seja mais acessível a mais dentistas. Também existem novas áreas de tecnologia computacional e robótica, expandindo para a inteligência artificial. Acredito que muitas pessoas dentro da odontologia teriam habilidade para utilizar essas ferramentas e fazer evoluir o campo odontológico. Mas para que isso aconteça é necessário entender que o conhecimento tem que ser buscado fora do contexto da odontologia e traduzido para nosso uso. 

No final das contas nós sabemos os problemas que estão ocorrendo na boca dos pacientes e os problemas/barreiras que encontramos. Então temos que ter ciência que não adianta só tratar o paciente, nós temos que ir além do que existe dentro da odontologia para criar novas oportunidades e tecnologias. 

Dr. Vitor no exercício da Odontologia

5) Seu comprometimento em compartilhar conhecimento e inspirar dentistas globalmente é admirável. Como você vê o papel da colaboração internacional na pesquisa odontológica e na implementação de abordagens inovadoras? Existem colaborações ou projetos específicos que você acredita que podem ter um impacto significativo na evolução da Odontologia nos próximos anos?

A colaboração internacional é a chave do sucesso para criar novas tecnologias. Existem diferentes pessoas e pesquisadores no ramo odontológico que têm distintos conhecimentos. Portanto, a integração dos conhecimentos aprimorados dessas pessoas ao redor do mundo é o que faz da criação dessas novas tecnologias de frente que vem mexendo com a profissão. 

Existem muitos exemplos de colaborações internacionais. Eu mesmo sou um exemplo de um pesquisador que usa o melhor do Reino Unido (a pesquisa biológica de linha de frente) e também o melhor do Brasil (a pesquisa de ensaio clínico). Outro exemplo, é o da R-crio, que faz a inovação de usar e armazenar células-tronco no Brasil e está colaborando com uma universidade na Flórida fazendo pesquisas inovadoras no ramo de odontologia espacial.

Não há só esses dois exemplos de colaborações, como existem diversas outras colaborações internacionais nas Américas, Ásia, Europa, África e Oceânia. Acredito que sem colaboração não há inovação, e dividir informação é o que vai nos levar a fazer mais para a nossa profissão e também para os nossos pacientes.

Por fim, deixo-me à disposição para colaborar com qualquer interessado e receber alunos e profissionais no meu laboratório na Universidade de Sheffield, onde fui recentemente contratado para ser o diretor da pós-graduação de Periodontia.

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