Entrevista com Dra. Regina Goldenberg

Dra. Regina Goldenberg possui graduação em Nutrição pela Universidade Federal Fluminense (UFF), doutorado em Ciências Biológicas (Biofísica) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pós-doutorado em Terapia Celular na Doença de Chagas no Albert Einstein College of Medicine, Nova Iorque. É Professora Titular do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho. É Professora Avaliadora do SINAES-INEP – Ministério da Educação. Atua na área de Fisiologia do Sistema Digestório, com ênfase em fisiologia hepática; na área de Biologia Celular, com ênfase em cultivo celular; e na área de Bioengenharia Tecidual, com ênfase na geração de fígados bio-artificiais. As áreas de destaque em sua pesquisa envolvem comunicação intercelular, células-tronco e terapias celulares hepáticas. Membro da diretoria da Associação Brasileira de Terapia Celular e Gênica (ABTCel-Gen) até 2023, Responsável Técnica Adjunta do Centro de Tecnologia Celular do Instituto Nacional de Cardiologia (CTC-INC), membro da comissão do Latin American Affairs Committee of Tissue Engineering and Regenerative Medicine International Society (TERMIS) e coordenadora adjunta da Rede Nacional de Especialistas em Terapias Avançadas RENETA-ANVISA. Editou dois livros na área de células-tronco, produziu 19 capítulos de livros e possui mais de 97 artigos publicados em revistas de impacto internacional. Foi selecionada para o programa Cientista do Nosso Estado (CNE-FAPERJ) e Pesquisadora 1D do CNPq.

1) Dra. Regina, sua trajetória acadêmica é impressionante, com contribuições significativas na área de Fisiologia do sistema digestório, Biologia Celular e Bioengenharia Tecidual, com destaque para a geração de fígados bio-artificiais. Como essas áreas se conectam em sua pesquisa e qual é o potencial impacto dessas pesquisas na medicina regenerativa?

Na grande área que engloba o sistema digestório, as minhas pesquisas focaram no fígado. Esse órgão sólido é o maior do corpo humano, responsável por múltiplas e importantes funções, como a metabolização de substâncias tóxicas endógenas e exógenas. A despeito de sua grande capacidade regenerativa, lesões crônicas e persistentes, ressecções extensas ou mesmo lesões agudas graves podem levar a perda dessa capacidade, quando o único tratamento atualmente disponível é a substituição do órgão, por meio do transplante hepático. Apesar de ser um procedimento largamente realizado, o transplante hepático enfrenta limitações como a oferta de enxertos inferior à demanda e complicações relacionadas à imunossupressão prolongada. Com a finalidade de ampliar a oferta de órgãos, os critérios para aceite de enxertos hepáticos têm sido flexibilizados. Mesmo assim, cerca de 22% dos pacientes morrem na lista de espera por um fígado por falta de órgãos. Como potencial solução para a escassez de enxertos, nós geramos, a partir das publicações do grupo do Yamanaka, células-tronco de pluripotência induzida (iPSC) derivadas de eritroblastos do sangue periférico e diferenciamos em células tipo hepatócito, que envolve um conhecimento amplo da biologia celular. Para o desenvolvimento do fígado bioartificial utilizamos, por meio de técnicas da bioengenharia tecidual, arcabouços descelularizados de fígados de porcos e/ou humanos e recelularizamos, com células tipo hepatócitos ou com organoides hepáticos multicelulares, compostos de células tipo-hepatócito, células endoteliais derivadas de iPSC (ambas geradas a partir de eritroblastos do sangue periférico) e células mesenquimais derivadas do sangue menstrual. A determinação da combinação funcional entre a matriz extracelular (MEC) e o tipo celular ideal permitirá a criação de fígados bioartificiais viáveis e, por fim, abrirá uma nova possibilidade para os pacientes que estão na fila de transplante. Fígados de porcos e fígados humanos, por não atenderem aos critérios de viabilidade necessários ao transplante em pacientes que aguardam na lista, são usados em nossos estudos. Para pacientes e médicos, poderemos oferecer fígados recelularizados com as células do próprio paciente evitando a rejeição pós transplante. Para os pesquisadores, o desenvolvimento dos organoides hepáticos poderão servir de plataforma para o estudo de metabolismo e toxicidade de fármacos, e os resultados deste estudo poderão abrir a possibilidade de aprofundar os conhecimentos adquiridos para a realização de estudos não-clínicos e clínicos de fase I.

A ciência sobrevive nas mãos calejadas dos cientistas e todo o grupo de pós-doutorandos, doutorandos, mestrandos e alunos de iniciação científica

2) Como Professora Avaliadora do SINAES e Membro da Associação Brasileira de Terapia Celular e Gênica, você desempenha papéis cruciais na avaliação da educação superior e no avanço da terapia celular no Brasil. Poderia compartilhar sua visão sobre o estado atual e o futuro da terapia celular no país?

O investimento público na ciência brasileira sempre foi abaixo das demandas das nossas necessidades para o desenvolvimento de pesquisa de ponta. No Brasil, há pouco investimento privado e doações para a ciência como ocorre em outros países. Isso pode ser bem exemplificado pelo baixo número de patentes envolvendo produtos e processos inovadores. Mas a ciência sobrevive nas mãos calejadas dos cientistas e todo o grupo de pós-doutorandos, doutorandos, mestrandos e alunos de iniciação científica.

Nos últimos anos, houve uma diminuição nos investimentos em pesquisa, o que prejudicou o desenvolvimento da ciência brasileira e, consequentemente, atingiu os estudos no campo da terapia celular. A pandemia do COVID-19 em 2020 também foi um fato que levou ao fechamento de diversos centros de pesquisa enquanto outros que trabalhavam com vírus e vacinas intensificaram para conter a epidemia da COVID-19. A partir de 2023, o investimento na ciência ainda será usado para recuperar o que foi perdido nos últimos anos.

Como Professora Avaliadora do SINAES eu observo que o número de Instituições de Ensino Superior tem aumento rápido e crescente. Vários cursos da área da saúde possuem 40% da carga horária em Ensino à Distância o que leva, sob meu ponto de vista, um abismo entre o profissional e o paciente. Eu sou a favor do Ensino à Distância, participei de um grande consórcio envolvendo as Instituições de Ensino Superior públicas. Mas penso que a elaboração da matriz curricular deveria contemplar uma carga presencial mais expressiva, principalmente nos cursos em que a interação profissional x paciente ocorra. Essa geração está vivendo em um ambiente tecnológico com destaque para a inteligência artificial. Claro que a tecnologia tem suas vantagens, mas me deparo com jovens graduandos que têm dificuldade de falar com um paciente, por exemplo. Vejo uma ausência de raciocínio crítico.

3) Como Responsável Técnica Adjunta do Centro de Tecnologia Celular do Instituto Nacional de Cardiologia, você está envolvida em iniciativas práticas no campo da terapia celular. Quais são os desafios enfrentados no desenvolvimento e implementação de terapias celulares no contexto brasileiro e como esses desafios podem ser superados?

Quando os ensaios clínicos de terapia celular iniciaram no Brasil e no mundo, somente as células mononucleares derivadas da medula óssea (CMMO) foram utilizadas em pacientes com diferentes diagnósticos. Elas foram autorizadas porque o procedimento é similar ao transplante de medula óssea em pacientes com doença hematológica há mais de 60 anos. Além disso, o transplante era autólogo, ou seja, as CMMO do paciente eram injetadas no próprio paciente. Elas foram injetadas no órgão doente como no coração e no cérebro ou injetadas na veia esperando que elas fossem para o órgão doente. Mas os resultados benéficos vistos nos estudos não clínicos não foram observados na grande maioria dos estudos clínicos. 

Depois a aposta foi nas células-tronco mesenquimais (CTMs). O gargalo para usar essas células é que elas precisam ser manipuladas, pois exige o cultivo celular. Por isso, houve investimentos para a construção dos Centros de Tecnologia Celular (CTC) onde as células do paciente são cultivadas em condições livres de patógenos, ou seja, com Boas Práticas de Fabricação (BPF) e em boas práticas de laboratório (BPL). Dessa forma elas poderiam ser injetadas nos pacientes. A grande maioria dos estudos mostrou que apesar de apresentar algum benefício, as células não permaneciam no tecido do órgão onde foram injetadas. Por isso os estudos estão se voltando para as vesículas extracelulares presentes no sobrenadante das CTMs cultivadas, mas elas só podem ser utilizadas nos pacientes se forem obtidas no CTCs. Atualmente, o CTC do Rio de Janeiro montou um banco de células de pluripotência induzida (iPSC). Os desafios sempre moram nos auxílios recebidos, que são sempre menores do que o necessário.

Dra. Regina Goldenberg

4) Como membro da comissão do Latin American Affairs Committee of Tissue Engineering and Regenerative Medicine International Society (TERMIS), como você avalia o posicionamento do Brasil com relação ao desenvolvimento de produtos de terapia avançada?

O Brasil ainda tem baixos índices no desenvolvimento de produtos e processos. Tem uma produção modesta de patentes. Mas a rede RENETA-ANVISA está dando celeridade aos pedidos de solicitação de produtos e esse cenário modesto vai ganhar mais visibilidade.

A RENETA-ANVISA está contribuindo para o avanço e regulamentação das terapias avançadas no Brasil. 

5) Além de sua atuação na pesquisa e na academia, você é coordenadora adjunta da Rede Nacional de Especialistas em Terapias Avançadas RENETA-ANVISA. Como essa rede está contribuindo para o avanço e regulamentação das terapias avançadas no Brasil, e quais são os principais obstáculos que você identifica nesse processo?

A RENETA é um braço da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) em cooperação técnica com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e executado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Um dos objetivos da RENETA é dar suporte à ANVISA na análise de documentos relativos a estudos clínicos e registros de produtos, além de contribuir para o acompanhamento pós-comercialização de produtos de terapia avançada (PTA). A rede colaborativa da RENETA inclui profissionais de diferentes áreas, como médicos, pesquisadores, farmacêuticos, engenheiros, biólogos, entre outros. Essa rede é fundamental para facilitar o compartilhamento de informações, a realização de estudos clínicos e a criação de diretrizes para práticas seguras e eficazes. Além disso, ela se dedica a promover a conscientização sobre a medicina regenerativa, medicina de precisão e a terapia avançada em toda a sociedade, para que mais pessoas possam se beneficiar dessas inovações.

O avanço na área da terapia celular é crescente. O cenário mostra que anteriormente a busca por PTA era mais para produtos na área da bioengenharia tecidual, terapia celular e terapia gênica. Atualmente, o cenário mostra que os produtos da terapia gênica estão ganhando o mercado. Os produtos de terapia avançada com registro para comercialização aprovado pela ANVISA são: LUXTURNA, ZOLGENSMA, KYMRIAH, CARVYKTI e YESCARTA. A RENETA-ANVISA está contribuindo para o avanço e regulamentação das terapias avançadas no Brasil. 

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