Entrevista com Dra. Rosana Bizon

Professora na Faculdade de Medicina de Petrópolis / Centro Universitário Arthur Sá Earp Neto (FMP/UNIFASE) e Pesquisadora no Laboratório de Medicina Regenerativa FMP/UNIFASE. Atualmente, é responsável pela implementação do Centro de Processamento Celular da UNIFASE. Desenvolve atividades tecnológicas e científicas na área de biologia celular, com ênfase em metodologias de cultivo primário de células e ensaios de controle de qualidade celular, aplicáveis a toxicologia in vitro e medicina regenerativa. Atua no planejamento de ambientes limpos para o processamento de células e Produtos de Terapias Avançadas, em atendimento às normas regulamentadoras relacionadas e no desenvolvimento de novos métodos analíticos. Farmacêutica de formação, com habilitação em Indústria e Mestre em Ciências Morfológicas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Doutora em Ciências pelo Programa de Pós-Graduação em Biotecnologia do Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (INMETRO). Suas atividades de pesquisa e desenvolvimento tecnológico recebem apoio de fomento da Fundação Octacílio Gualberto (FOG), CNPq e FAPERJ.

1) Dra. Rosana, como pesquisadora e professora, poderia compartilhar insights sobre o papel da educação na formação de profissionais aptos a lidar com as demandas emergentes nas áreas de biologia celular, terapias avançadas e medicina regenerativa?

    A medicina regenerativa representa um campo vasto de inovação na educação, devido a sua natureza diversificada e tecnologicamente avançada. A convergência entre a prática clínica e a expertise em habilidades tecnológicas emergentes é um grande desafio. Isto se traduz em uma lacuna na educação em saúde, complexa, seja no Brasil ou qualquer lugar do mundo (Wyles et al., 2019). Os profissionais médicos e biomédicos envolvidos devem ser instruídos e habilitados para lidar com questões críticas de qualidade e segurança na prática clínica ou na produção e liberação de produtos biomédicos para uso humano. São áreas distintas e que devem convergir e, nesta questão, o papel dos formadores do profissional é crítico. A educação em terapias avançadas deve ser ampla e abrangente, incluindo princípios como os que cito a seguir, mas não estando limitados aos mesmos: i. regulamentação sanitária, ética e bioética. Neste contexto, são aplicadas as normas específicas para produtos de terapias avançadas, publicadas pela ANVISA em 2021 e 2023, sendo elas as RDC 505/2021, RDC 506/2021, RDC 836/2023 e IN 270/2023, além de complementares de produtos para saúde; ii. fundamentos da biologia celular aplicados às técnicas de cultivo in vitro, tanto para o entendimento maior do sistema utilizado para a produção, como para as fontes ideais de coleta de material utilizado para a obtenção das células; iii. bioengenharia e engenharia de materiais, voltados para biocompatibilidade, características, potenciais de uso; iv. pesquisas pré-clínicas e uso de métodos validados pela ANVISA; v. pesquisa clínica e suas boas práticas; vi. pesquisa translacional e transferibilidade de processos desenvolvidos; vii. clínica focada na medicina regenerativa, na especialidade de interesse, com diagnóstico e capacitação no uso de terapias avançadas; viii. boas práticas laboratoriais, bem como as boas práticas de cultura de células humanas e de fabricação.

    A aplicação de metodologias ativas de ensino é crucial, especialmente no que tange a questões regulatórias, éticas e na translação de protocolos experimentais para a prática clínica. Aulas práticas são fundamentais para a compreensão e aplicação eficaz de ferramentas tecnológicas na biomedicina. As técnicas são executadas de forma integral pelos alunos e as dificuldades surgidas têm vez para serem tratadas. Os alunos devem ser incentivados a explorar novos conhecimentos e abordagens pedagógicas, garantindo uma formação completa e adaptada às demandas contemporâneas da biotecnologia na medicina regenerativa. Na FMP/UNIFASE, são oferecidos cursos de injeção de terapias auxiliadas por videoguiagem no Centro de Inovação, Pesquisa e Atualização Cirúrgica (CIPAC), aulas teóricas de medicina regenerativa, aulas práticas de técnicas de cultivo celular com foco no uso terapêutico de células e produtos de terapias avançadas no Laboratório de Medicina Regenerativa (LMR).

    Dra. Rosana Bizon fazendo experimento

    2) Como você enxerga a importância do controle de qualidade das culturas de células humanas para os avanços em terapias celulares e medicina regenerativa? Poderia compartilhar exemplos práticos de como a qualidade dessas culturas impacta diretamente esses campos?

    Sobre a importância da realização de controle de qualidade de culturas celulares, sua avaliação, algumas características estão diretamente relacionadas à sua capacidade de desempenho terapêutico. São exemplos práticos: a presença de contaminantes microbiológicos, de acordo com o tipo, pode liberar endotoxinas para o produto, com consequências graves para o paciente; ou pode impedir o êxito da obtenção da cultura de células; ou pode fazer com que as células, mesmo após terem recebido tratamento adequado, tenham sua potência alterada. Células em estado de senescência, ou com taxa de proliferação reduzida, apresentam menor potencial terapêutico; uma discussão corrente na ciência é de que pode haver um equilíbrio delicado entre os níveis de duplicação da população (do inglês, population doubling level – PDL) e a potência/atividade in vivo das células-tronco mesenquimais (CTM). Culturas celulares mistas ou com identidade alterada para o tipo celular de interesse; avaliar a expressão fenotípica celular faz com que o produto liberado para uso médico tenha maior segurança e potencial terapêutico.

    Um dos principais desafios das terapias avançadas é a sua avaliação quanto à qualidade. Isto porque os métodos analíticos validados disponíveis ou aceitos pelos órgãos regulatórios não foram desenvolvidos com este objetivo. As resoluções ANVISA 836/2023 e 166/2017 e a Instrução Normativa 270/2023, atentam para a necessidade de realização dos ensaios de qualidade. O Centro de Processamento Celular (serviço em que o produto de terapia avançada, ou parte dele, é produzido) deve estabelecer em POPs (Procedimentos Operacionais Padrão) os métodos dos ensaios utilizados em cada análise, seus parâmetros de incerteza de medição, e os valores ou faixas de valores aceitáveis para as características críticas definidas para cada produto, tais como quantidade mínima e recuperação de populações específicas de células, viabilidade celular, identificação celular, esterilidade e ensaios funcionais. São traduzidos como teor do produto, dose, identidade e potência. A IN 270/2023, no artigo 47º determina: quaisquer testes analíticos realizados em materiais ou amostras não empregados diretamente na produção, porém com informações que são utilizadas no processo de fabricação do produto de terapia avançada, por exemplo, o sequenciamento genético do paciente, devem ser validados. A RDC 166/2017 estabelece que os parâmetros de validação e seus respectivos critérios de aceitação devem ser definidos de acordo com as características do analito e da natureza do método.

    A diversidade dos produtos de terapias avançadas é ilimitada e cada laboratório tem liberdade de escolha dos ensaios aplicados, é claro, escolha justificada na coerência de aplicação. Porém, o laboratório deve validar os ensaios, produto a produto, em meio a métodos que não foram desenvolvidos, em sua essência, para células cultivadas. Atualmente, a busca segue no desenvolvimento ou aplicação de métodos validados e alternativos ao uso de animais.

    A medicina regenerativa representa uma mudança no paradigma dos cuidados à saúde tradicionais, quer dizer, contemporâneos, alternando de “combater à doença” para o de “restaurar a saúde”. Assim, os profissionais de saúde em desenvolvimento precisam entrar no portal de novos conhecimentos.

    3) Dado o seu envolvimento no desenvolvimento de culturas de células humanas, quais são os desafios mais significativos enfrentados ao estabelecer padrões de qualidade e aplicar métodos alternativos na biotecnologia, especialmente no contexto de terapias celulares?

    O maior desafio é a ausência de padrões de referência de qualidade. Os padrões de referência devem agregar informações qualitativas e quantitativas, incluindo pureza e estabilidade. Células não são quimicamente definidas e possuem características dependentes das condições do doador e o perfil resultante das culturas celulares variam conforme idade, uso de medicamentos, patologias associadas, estilo de vida etc. São muitas as alterações observadas nas células cultivadas in vitro, como viabilidade, produção de moléculas bioativas e potencial de diferenciação. Portanto, não ter um padrão de referência dificulta a comparabilidade de produtos e análises inter laboratoriais. Na impossibilidade de uso de células de referência, a base da qualidade atual reside na aplicação das Boas Práticas de Laboratório (BPL). Gradativamente, os laboratórios estão buscando a padronização de técnicas, o registro de métodos e resultados de forma sistemática e o cuidado com equipamentos e insumos utilizados. Os laboratórios que manipulam células para uso terapêutico e pesquisa clínica atendem às Boas Práticas em Células Humanas (BPCH) (RDC 836/2023) e às Boas Práticas de Fabricação de Produtos de Terapias Avançadas (IN 270/2023). O nível de exigência para o alcance da qualidade é elevado. A padronização de protocolos, a validação de ensaios e o atendimento às boas práticas, atribuem confiabilidade nos resultados gerados e agrega segurança em células e produtos de terapias avançadas utilizadas na clínica ou de forma terapêutica. A RDC 836/2023 abrange quesitos que vão além da manipulação das células, com o propósito do alcance da qualidade, como monitoramento no ambiente de manipulação, equipamentos, insumos, documentos, registros e rastreabilidade, biossegurança, pessoal. O treinamento de pessoal é fundamental, inicial e contínuo. O pessoal envolvido deve ser capacitado, mas principalmente, deve estar consciente da importância da aplicação das boas práticas. Sobre os métodos alternativos ao uso de animais, é intensa a busca por métodos alternativos validados que possam ser aplicados em produtos biotecnológicos e a comunidade científica tem o consenso do entendimento de que os sistemas tridimensionais produzem informações muito mais fidedignas dos sistemas biológicos do que os bidimensionais. São exemplos de métodos alternativos em desenvolvimento, o cultivo tridimensional de pele (a pele equivalente), o cultivo de células de cartilagem em esferoides, o cultivo de tecidos ex vivo, a aplicação de órgãos-em-chips. Outros métodos tradicionais ainda seguem em uso, mas não de forma específica para o contexto da terapia celular.

    Dra. Rosana Bizon e colaboradores

    4) Como professora e pesquisadora, como você aborda a interdisciplinaridade entre a biologia celular, a biometrologia e a legislação sanitária em sua prática acadêmica? Como essa abordagem contribui para a formação de profissionais mais preparados para atuar nessas áreas?

    A medicina regenerativa representa uma mudança no paradigma dos cuidados à saúde tradicionais, quer dizer, contemporâneos, alternando de “combater à doença” para o de “restaurar a saúde”. Assim, os profissionais de saúde em desenvolvimento precisam entrar no portal de novos conhecimentos. Habilidades complementares devem caminhar juntas e equipes multidisciplinares são essenciais para encontrar novas soluções, novos produtos. O caminho seguro, para que habilidades diversas conversem de forma pacífica, é o consentimento de documentos guias, diretrizes, normas, publicados por especialistas e organizações sanitárias e de qualidade. No Brasil, ANVISA e INMETRO. A legislação sanitária possui um pacote regulatório específico para aplicação em células e produtos de terapias avançadas, que abrange a produção de terapias avançadas, a elaboração dos protocolos clínicos destinados a ensaios clínicos, que fazem uso dos produtos de terapias avançadas, e o registro desse produto. Os documentos são elaborados com a participação de especialistas, que são elencados, especialmente, para contemplar as questões da biologia celular e o que esta representa no conhecimento profundo do sistema utilizado, a plataforma tecnológica empregada, da segurança do paciente, e a garantia da qualidade da produção.

    Na prática acadêmica, a abordagem interdisciplinar entre biologia celular, biometrologia e legislação sanitária desempenha um papel crucial na capacitação de profissionais aptos a enfrentar os desafios da biotecnologia aplicada à saúde. É importante incentivar a formação de profissionais para o conhecimento abrangente sobre o processo, para que sejam capazes de analisar riscos e de que forma, com sua contribuição particular, especialista, deve cuidar ou atuar de forma preventiva. O profissional “t”, do inglês t-shaped professional, cabe muito bem aqui. Ainda que seja um exímio especialista, seus conhecimentos gerais devem abranger o todo. Mais uma vez, a equipe deve ser composta por profissionais de áreas complementares, multidisciplinar. A integração das abordagens da biologia celular, biometrologia e legislação sanitária na prática acadêmica prepara profissionais para atuar de forma ética e responsável, desenvolvendo e utilizando produtos e métodos que atendam aos mais elevados padrões de qualidade e segurança no contexto da biotecnologia aplicada à saúde. Afinal, eles devem estar aptos a participar da transferência, sendo mais específica, da translação de produtos desenvolvidos na pesquisa, para a clínica.

    Gradativamente, os laboratórios estão buscando a padronização de técnicas, o registro de métodos e resultados de forma sistemática e o cuidado com equipamentos e insumos utilizados. Os laboratórios que manipulam células para uso terapêutico e pesquisa clínica atendem às Boas Práticas em Células Humanas (BPCH) (RDC 836/2023) e às Boas Práticas de Fabricação de Produtos de Terapias Avançadas (IN 270/2023)

    5) Considerando sua atuação no planejamento de ambientes limpos para o processamento de células e Produtos de Terapias Avançadas, quais são as principais considerações normativas e desafios práticos ao garantir a conformidade com os padrões regulamentares relacionados a essas práticas?

    Os processos de fabricação precisam ser bem projetados e controlados para não adicionar mais variabilidade ao produto constituído à base de células e as normas contribuem neste aspecto. A normas ISO (Organização Internacional de Normalização) 14644-1, define os requisitos para a classificação da limpeza do ar e o controle de contaminação. A Instrução Normativa (IN) ANVISA 270/2023, define os requisitos para as boas práticas de fabricação (BPF) para produtos de terapias avançadas. Esta IN foi desenvolvida pela ANVISA e é harmonizada aos critérios regulatórios nacionais e internacionais. Sua base é o Anexo 2A do Guia PIC/S (Esquema de Cooperação em Inspeção Farmacêutica), denominado em inglês “Annex 2A Manufacture of advanced therapy medicinal products for human use“, que trata da fabricação de medicamentos de terapia avançada para uso humano. Outro aspecto importante e estratégico da 270/2023 é a possibilidade de adequação dos requisitos de Boas Práticas de Fabricação para aplicação em processos de maior escala e no de menor escala de fabricação (por exemplo, em centros acadêmicos).

    Já os maiores desafios se concentram na manutenção das instalações de salas limpas, na adaptação de equipamentos desenvolvidos para as metodologias de cultivo celular, nem sempre próprios ao uso em salas limpas, e o volume e a variedade de ensaios necessários para o controle de produção e processo. Tudo isso resulta em custos elevados, seja para a implementação do processo, para as qualificações de equipamentos e de toda a infraestrutura, como na manutenção de rotina. A indústria farmacêutica tem potencial para sustentar esta estrutura, enquanto os laboratórios que funcionam com orçamento público, ou sustentam com grandes dificuldades ou o fazem aquém do ideal. Considerando, aqui, que o desenvolvimento das terapias celulares e bioengenharia são personalizados.

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