Entrevista com Dra. Leandra Baptista

Professora associada da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Docente do programa de pós-graduação em Biotecnologia do Instituto Nacional de Metrologia, Qualidade e Tecnologia (Inmetro). Graduação em Ciências Biológicas e doutorado em Ciências Morfológicas, ambos pela UFRJ. Pesquisadora visitante na Universidade de Lyon, França. Fellowship do Programa Marie Curie, Eden Tech, França, Paris. Atua nas áreas: Biologia de Células Tronco Mesenquimais, Microambiente do Tecido Adiposo e Obesidade, Engenharia de Cartilagem, Osso e Tecido adiposo, Cultura de células 3D, Esferoides, Organoides, Bioprinting e Microfluídica; Formação de pessoas: Ensino de graduação e pós-graduação. Orientadora de mestrado e doutorado. Recebeu os prêmios: Jovem Cientista do Nosso Estado, Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ); Bolsista de produtividade do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq); Pesquisador ONR (Office of Naval Research), EUA, participante do sétimo ciclo, AIT, Swissnex Brasil-Suíça e finalista do primeiro Innovation Challenge da L’Oréal Pesquisa & Inovação e EPISKIN Brasil. Fundadora científica da startup Gcell cultivo 3D. 

1) Dra. Leandra, seu trabalho abrange uma gama impressionante de pesquisa, desde a biofabricação de tecidos até a aplicação de nanopartículas em biomedicina. Como você vê a intersecção entre essas áreas e como isso pode moldar o futuro da terapia celular e da medicina regenerativa?

A engenharia tecidual é uma ciência multidisciplinar que abrange as áreas de ciências biológicas e de materiais. Recentemente, com o surgimento da bioimpressão, a engenharia tecidual passou a incorporar também tecnologias da indústria 4.0. A recente incorporação destas tecnologias levou a criação da área de biofabricação, cujo principal objetivo é de incorporar as tecnologias de automação a diferentes etapas de fabricação de tecidos e órgãos em laboratório. A tecnologia mais comumente utilizada na área de biofabricação é a bioimpressão, durante a etapa de formação destes tecidos. Contudo, é importante que a automação seja também incorporada em outras etapas, como por exemplo na etapa de semeadura das células e de maturação do tecido fabricado. 

Devido ao seu caráter multidisciplinar, a engenharia de tecidos é uma ciência que nasce da colaboração de cientistas, logo, a atuação nesta área faz com que você transite por diversos mundos. Eu, por exemplo, possuo doutorado em biologia de células-tronco tendo atuado nas áreas de terapia celular, engenharia tecidual, cultivo 3D e recentemente bioimpressão e microfluídica. Não sou uma cientista da área de materiais, mas utilizo em minha pesquisa científica diversos tipos de materiais, incluindo nanopartículas. 

E como a biofabricação pode moldar o futuro da medicina regenerativa? Os ensaios clínicos em medicina regenerativa afirmam a segurança, e na maior parte dos estudos, também a eficácia dos protocolos de terapia celular. Dependendo do tipo de protocolo, essas células podem ser combinadas a biomateriais até mesmo em nanoescala. Por exemplo, diferentes combinações de hidrogéis já foram utilizadas para a injeção de células-tronco/estromais mesenquimais no local da lesão. Se pensarmos na biofabricação de tecidos, o nível de exigência de complexidade desses biomateriais é maior, pois neste caso o objetivo é a fabricação de tecidos miméticos aos tecidos do nosso corpo. Lembrando que, no caso da engenharia tecidual o termo mimético remete a um mimetismo de função e de organização 3D das células. Eu acredito que no futuro as células continuarão como um componente essencial da medicina regenerativa, mas os ensaios clínicos com tecidos fabricados em laboratório se tornarão cada vez mais frequentes. 

Dra. Leandra Baptista no evento Innovation Challenge

Uma das maiores vantagens do cultivo de células em 3D é o mimetismo de estrutura e função dos nossos tecidos e órgãos.

2) Sua pesquisa se concentra no cultivo 3D de esferoides de células-tronco de tecido adiposo para a formação de tecidos como cartilagem, osso e tecido adiposo. Qual tem sido o maior desafio ao trabalhar com esse método de cultivo e como você planeja superá-lo?

As tecnologias de cultivo de células em 3D, como toda tecnologia emergente, vêm para resolver diversas limitações das tecnologias atuais, mas também criam desafios. Uma das maiores vantagens do cultivo de células em 3D é o mimetismo de estrutura e função dos nossos tecidos e órgãos. O nosso grupo de pesquisa trabalha com esferoides. De maneira simplificada, os esferoides são agregados de células, no nosso caso, células-tronco/estromais mesenquimais de tecido adiposo. No geral, células de origem mesenquimal quando cultivadas em ambientes favoráveis à interação célula-célula, se auto montam culminando na formação dos esferoides. Uma vez formado esse ambiente 3D, as células iniciam a síntese de matriz extracelular, uma das razões para este tipo de cultivo 3D ser considerado como mimético aos tecidos nativos. 

Em nosso grupo de pesquisa, nós utilizamos os esferoides de células-tronco/estromais mesenquimais de tecido adiposo para a formação de cartilagem, osso e o tecido adiposo. Para alcançar este objetivo, é necessário cultivar esses esferoides com os estímulos apropriados para cada via de diferenciação celular, respeitando o tempo de maturação. 

Há mais de 10 anos atrás, quando o cultivo de esferoides ainda era pouco explorado na engenharia tecidual os desafios eram diversos, desde a sua manipulação até as análises. Atualmente com o avanço das tecnologias de cultivo e com o desenvolvimento de diversos kits de análise comerciais, o maior desafio é na verdade bem similar aos desafios encontrados no cultivo de células em monocamada, e estão diretamente relacionados à escalabilidade e custo do processo. E esta foi a motivação para a realização do meu pós-doutorado em microfluídica na startup francesa Eden Tech. Atualmente lemos em diversos veículos de notícias informações sobre organ-on-a-chip. Esta tecnologia é baseada nos conceitos de microfluídica, a qual podemos simplificar como a passagem de fluidos em microcanais. Quando aplicamos a microfluídica ao cultivo de células, a passagem de fluido passa a ser a de meio de cultivo. O uso de microcanais reduz drasticamente o volume de meio de cultivo necessário, e por consequência, o custo. Por exemplo, morfógenos e fármacos são necessários na maturação dos esferoides, sendo renovados em cada troca de meio, durante várias semanas. A microfluídica nos permite utilizar microlitros a cada troca de meio, ao invés de mililitros utilizados nos cultivos tradicionais, o que ao final do processo leva a uma redução significativa do seu custo. A escalabilidade ainda é um desafio, mas possível de se alcançar no momento de construção desses chips. 

3) Uma das áreas de estudo em que você está envolvida é a biologia das células-tronco de tecido adiposo subcutâneo, especialmente em contextos fisiopatológicos como sobrepeso e obesidade. Como as descobertas nessa área podem impactar o tratamento dessas condições e trazer avanços na medicina regenerativa?

Na verdade, eu tive o privilégio de durante o meu doutorado, colaborar com um projeto multidisciplinar voltado à obesos mórbidos do Hospital Universitário da UFRJ. Após a massiva perda de peso devido a cirurgia bariátrica e melhora do quadro clínico, os pacientes eram encaminhados ao serviço de cirurgia plástica para intervenção reparadora, normalmente para a remoção do excesso de pele e gordura. Nós coletávamos essa gordura para o isolamento de células-tronco/estromais mesenquimais e realizávamos diversos ensaios experimentais utilizando como controle, células de doadores sem histórico de obesidade. Nós obtivemos resultados bem interessantes, os quais levaram a continuidade do projeto. Começamos a estudar diferentes tipos de tecido adiposo (subcutâneo e interno) de obesos mórbidos durante a tese da Karina Ribeiro, sob minha orientação. 

O que nos motivou na época desse estudo foi responder a seguinte pergunta: se células-tronco/estromais mesenquimais podem ser isoladas de tecido adiposo, então, quanto maior a quantidade de tecido adiposo, maior será a quantidade de células-tronco/estromais mesenquimais? A resposta a esta pergunta representa o primeiro impacto gerado por esse estudo. O aumento da massa do tecido adiposo não aumenta o percentual de células-tronco/estromais mesenquimais, e na verdade, leva a polarização dessas células para um fenótipo mais inflamatório e menos regenerativo. Nosso estudo foi pioneiro a nível internacional, revelando a necessidade de conhecimento do histórico de obesidade de doadores para o uso de células-tronco/estromais mesenquimais de tecido adiposo em protocolos de terapia celular. 

Relacionado a tratamentos, podemos pensar em utilizar as células-tronco/estromais mesenquimais de tecido adiposo isoladas de doadores obesos para a geração de modelos 3D de esferoides para teste de medicamentos. Este tipo de abordagem faz parte de uma área que hoje é conhecida como medicina de precisão, e começa a ser utilizada no exterior para testes de quimioterapias em organoides formados a partir de células tumorais do próprio paciente. 

Os nossos estudos mais recentes nesse tema, estão agora focados no entendimento da biologia das células-tronco/estromais mesenquimais isoladas de diferentes camadas do tecido adiposo subcutâneo. Em colaboração com a Universidade de Lyon e com o Hospital Universitário da UFRJ analisamos amostras de tecido adiposo de doadores saudáveis, revelando diferenças entre as diferentes subpopulações de células-tronco/estromais mesenquimais do mesmo doador. O plano agora é dar continuidade a esse estudo partindo para modelos animais de obesidade e diabetes em colaboração com a Universidade de Lyon. 

O aumento da massa do tecido adiposo não aumenta o percentual de células-tronco/estromais mesenquimais, e na verdade, leva a polarização dessas células para um fenótipo mais inflamatório e menos regenerativo. Nosso estudo foi pioneiro a nível internacional, revelando a necessidade de conhecimento do histórico de obesidade de doadores para o uso de células-tronco/estromais mesenquimais de tecido adiposo em protocolos de terapia celular.

4) A biofabricação de cartilagem e osso é um campo promissor. Como sua abordagem utilizando esferoides tem se destacado em comparação com outras técnicas de biofabricação, e quais são os próximos passos para sua implementação clínica?

Como eu expliquei anteriormente, uma das tecnologias mais utilizadas em biofabricação é a bioimpressão 3D. A bioimpressão 3D por sua vez, é uma tecnologia promissora, porém desafiadora em diversos aspectos. Irei focar aqui nos desafios relacionados às células. Atualmente existem diversas técnicas de bioimpressão, sendo a de extrusão a mais utilizada. Nesta técnica de bioimpressão, é utilizado algum tipo de hidrogel ou ainda a combinação de hidrogéis para a formação do que conhecemos como biotintas (hidrogel associado a células). O maior desafio está na formulação das biotintas, pois, poucos biomateriais do tipo hidrogéis são capazes de resistir às forças físicas impostas pela extrusão. 

O nosso grupo de pesquisa trabalha com a bioimpressão do tipo extrusão, logo, enfrentamos os desafios relacionados à formulação das biotintas. Porém, enfrentamos um desafio adicional, que é a incorporação dos esferoides à biotinta ao invés de células em suspensão. A incorporação dos esferoides acaba levando à necessidade de desenvolvimento de outros protocolos de bioimpressão. Mas porque decidimos incorporar os esferoides às biotintas? Os resultados de bioimpressão publicados até o momento com células em suspensão revelam uma boa viabilidade celular e presença de marcadores de diferenciação/maturação, contudo, a morfologia não é mimética a encontrada nos tecidos nativos, e a função desses tecidos bioimpressos ainda é pouco investigada. Nós acreditamos no uso dos esferoides porque são estruturas tridimensionais miméticas aos tecidos e devido a sua capacidade de fusão, podem funcionar como blocos de construção, “encaixando” um aos outros, sofrendo remodelamento tecidual e se tornando estruturas mais complexas em formatos já pré-estabelecidos para a bioimpressão. 

O estudo que utiliza esferoides de células-tronco/estromais mesenquimais de tecido adiposo diferenciados para cartilagem e osso está em fase pré-clínica. Nós publicamos no ano passado o nosso primeiro artigo com resultados in vivo utilizando as tecnologias de impressão 3D e a incorporação de esferoides após a impressão. Nos últimos anos temos desenvolvido diversos protocolos de bioimpressão para que seja possível a incorporação dos esferoides às biotintas para um novo teste em ensaio in vivo de regeneração óssea. Considerando a possibilidade de ensaio clínico, estaremos prontos assim que for comprovada a eficácia de regeneração óssea do nosso osso biofabricado. 

Dra. Leandra Baptista

Podemos pensar em utilizar as células-tronco/estromais mesenquimais de tecido adiposo isoladas de doadores obesos para a geração de modelos 3D de esferoides para teste de medicamentos. Este tipo de abordagem faz parte de uma área que hoje é conhecida como medicina de precisão, e começa a ser utilizada no exterior para testes de quimioterapias em organoides formados a partir de células tumorais do próprio paciente. 

5) Seu trabalho também aborda a produção escalonável de esferoides a partir de células-tronco de tecido adiposo humano. Considerando o potencial terapêutico desses esferoides, como você planeja garantir sua produção em larga escala sem comprometer a qualidade e eficácia para aplicações clínicas?

A nossa preocupação em alcançar uma produção escalonável de esferoides é devido a necessidade de milhares de esferoides para os protocolos de bioimpressão. Por exemplo, na Gcell já atingimos o marco de 9.720 esferoides produzidos para a fase pré-clínica de um projeto para a indústria. E quando pensamos em escalar qualquer tipo de processo, estamos na verdade aplicando a este processo princípios de automação. No nosso caso, o que conseguimos alcançar até o momento, foi realizar a semeadura das células de forma automatizada. A suspensão de células é dispensada aos moldes já posicionados em placas de cultivo para a formação dos esferoides. 

Contudo, quando pensamos em uma linha de biofabricação de tecidos, devemos imaginar todas as etapas do processo sendo realizadas de maneira automatizada. Logo, é necessário incluir a automação nas demais etapas como por exemplo, na troca de meio de cultivo e na transferência dos esferoides para a bioimpressora. A bioimpressão já é considerada um processo automatizado. 

Uma das minhas ideias, como eu expliquei anteriormente, é utilizar a microfluídica para a formação e manutenção dos esferoides. Utilizando um chip de microfluídica é possível realizar a etapa de semeadura através da injeção da suspensão de células nos microcanais e aguardar pela decantação e formação dos esferoides. Podemos utilizar o mesmo protocolo para a troca de meio, ou até mesmo perfundir esse meio ao longo das semanas com o auxílio de bombas externas ao sistema. Aguardem a publicação do artigo sobre os dados gerados durante o meu pós-doutorado na startup francesa de microfluídica. Conseguimos avançar neste sentido. 

Sobre a qualidade e eficácia, tudo irá depender da correta validação do processo e eu sou bem otimista em relação a isso. O que tenho percebido ao longo dos anos é que a qualidade das células em monocamada é essencial para que se tenha uma boa qualidade de formação e maturação dos esferoides. 

A minha motivação com a área de células-tronco, era na verdade a possibilidade de levar os resultados do laboratório para a clínica de maneira mais ágil, em comparação a outras áreas do conhecimento. 

6) Como fundadora científica da Gcell, uma startup focada no cultivo 3D de células-tronco, poderia compartilhar conosco como a pesquisa e os desenvolvimentos tecnológicos realizados em seu laboratório estão sendo traduzidos em produtos ou serviços inovadores pela empresa, e como você vê o papel da Gcell no avanço da terapia celular e da medicina regenerativa?

Interessante você ter mencionado a conexão entre a pesquisa na Universidade e a sua translação em produtos e serviços inovadores porque essa foi a motivação para fundação da Gcell. Me lembro de, na graduação, o meu coração ter batido mais forte durante a aula sobre diferenciação celular a partir de células-tronco. E meses depois iniciei o estágio de iniciação científica nesta área. Durante o estágio fui percebendo que a minha motivação com a área de células-tronco, era na verdade a possibilidade de levar os resultados do laboratório para a clínica de maneira mais ágil, em comparação a outras áreas do conhecimento. 

Mas é claro que a translação de tecnologia gerada na universidade é um desafio grande. Eu já comentei algumas vezes, toda pesquisa com uma boa pergunta e bem executada gera resultados científicos interessantes, mas nem todo resultado científico interessante gera produto ou processo útil para a indústria ou para o mercado. E quando comparamos os projetos da universidade com os de empresas, como por exemplo com os da Gcell, a principal diferença é o tempo de execução. Na universidade nós temos tempo de explorar e aprofundar mecanismos biológicos elaborando novas hipóteses para um determinado fenômeno biológico. Também temos tempo de testar diversas vezes, por exemplo, um determinado constructo da engenharia tecidual, explorando diferentes resultados. Já no P&D para a indústria devemos ser mais assertivos, direcionando a tecnologia para uma determinada necessidade do mercado. 

A universidade gera o conhecimento e tecnologia e a indústria e o mercado aplica em produtos e processos. A grande questão hoje é o “gap” que existe entre o conhecimento e a sua aplicação. O Brasil está bem colocado no ranking mundial de produção científica, mas exibe péssimos indicadores de inovação. Eu enxergo o papel da Gcell preenchendo esse “gap” entre universidade e indústria, sendo uma startup deeptech focada em atender as necessidades do mercado de terapia celular e medicina regenerativa com foco em constructos tridimensionais da engenharia de tecidos. 

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